terça-feira, 10 de abril de 2007

*****AS CRIADAS*****

Cênicas Companhia de Repertório celebra universo abissal de Jean Genet













UNIVERSO ABISSAL DE GENET
Elton Bruno Soares de Siqueira
*



Mise en abyme é uma expressão francesa que não tem equivalente exato em nossa língua. “Estrutura em abismo” vem a ser o termo que alguns pensadores brasileiros encontraram para caracterizar a arte dentro da arte, a narrativa dentro da narrativa. A metáfora mais próxima desse tipo de estrutura é o jogo de espelhos. Rompendo com o conceito de representação da realidade, o artista se vale da arte para refletir a própria arte, colocando-nos na condição de partícipes do fazer artístico. Sem a segurança dos referentes da representação, sentimo-nos como que inseridos num abismo. Jean Genet, dramaturgo que radicalizou, em seu teatro, o jogo de espelhos, construiu sua dramaturgia na perspectiva da alteridade do sistema burguês dominante. De fato, seus textos se empenham em desvelar a sociedade burguesa, concebida como um grande teatro onde as pessoas fingem ser o que não são. Atenta à particularidade dessa dramaturgia, a Cênicas Companhia de Repertório, em homenagem aos vinte anos da morte de Genet, oferece ao público recifense o espetáculo As Criadas, com direção geral assinada por Marcondes Lima e Kleber Lourenço.
No palco, Antônio Rodrigues e Jorge de Paula desempenham, respectivamente, os papéis de Solange e Clara, duas irmãs, criadas de uma família burguesa, que arquitetaram a prisão do Senhor e, na iminência de serem desmascaradas, planejam assassinar a Madame, personagem interpretada por Eduardo Japiassú. A peça pode ser dividida em três momentos. No primeiro, as criadas se divertem em interpretar a patroa, no próprio aposento de sua senhoria. O fio narrativo estabelece o conflito quando, no auge do jogo, elas atendem a uma ligação do Senhor, que havia recebido liberdade condicional. Temendo que seus planos viessem à baila, elas decidem envenenar a Madame, pondo dez gotas de Gardenal em seu chá de tília. No segundo momento, a Madame chega ao seu próprio quarto, lamuriando a prisão do Senhor. Vendo o telefone fora do gancho, pergunta às criadas quem havia telefonado. Elas terminam revelando que o Senhor tinha ligado, informando de sua liberdade. A Madame, eufórica, recusa o chá de tília que lhe trouxe Clara e parte ao encontro do amante. No terceiro momento, enfim, sozinhas, fracassadas e temerosas, Solange e Clara voltam a jogar com os papéis de Madame e de criada, até que Solange serve à irmã, que desempenha a Madame, uma xícara do chá envenenado. Clara morre, Solange fica imóvel diante do público e as luzes se apagam, encerrando o espetáculo.
O “3” é um símbolo importante na peça de Genet. São três personagens realizando a ação dramática, dividida, como vimos, em três momentos, podendo ser, cada momento, por sua vez, dividido em outros três, e assim sucessivamente. Ademais, o próprio jogo abissal que Genet nos oferece é realizado por personagens que fecham, elas mesmas, o círculo ternário: Clara representa Madame, que se dirige a Solange, ela própria representando Clara. Inspirada pela ambivalência do texto, a encenação de Marcondes Lima e Kleber Lourenço parece apostar no número 3. O cenário é todo ele preto e branco, senão pelo vestido vermelho da Madame, que se encontra pendurado num porta-vestido. O desenho do palco segue os vértices de um triângulo: ao fundo, o porta-vestido, no formato de cruz (símbolo da trindade; da vida, morte e ressurreição), em frente ao qual está o leito da Madame; no lado esquerdo, uma caixa com tampa de vidro, donde se vêem guardados alguns tecidos brancos; no direito, a penteadeira de Madame, com um espelho oval, forte referência ao caráter abissal que propõe o drama genetiano. Duas escadas, cada uma numa extremidade do palco, levam ao primeiro andar, no centro do qual as criadas realizam algumas cenas e movimentos. Personagens femininas são desempenhadas por atores homens. Não bastasse o distanciamento que essa escolha propõe à cena, o figurino das criadas, inspirado em indumentárias japonesas, ainda contém, na parte de trás, uma abertura, de forma que a bunda e as pernas masculinas e peludas dos atores não deixassem dúvida de que se tratava de homens fazendo papéis femininos. Além de serem atores interpretando mulheres, os encenadores, em determinadas marcações ou gestus das personagens, imprimem um estilo camp, fazendo referência à cultura gay, também ela fortemente presente na obra de Genet. Em muitos momentos os atores não se olham, fixando os olhos em direções diferentes uns dos outros, a não ser em tempos precisos, em que seus olhares se encontram. Além disso, fazendo eco à estética e cultura contemporâneas, os encenadores recorrem a inúmeras referências, todas elas, no espetáculo, concentradas no eixo Brasil-França-Extremo Oriente. Como se vê, os exemplos são abundantes.
Vale destacar o trabalho rítmico da cena, possível pela marcação precisa e geométrica, pela iluminação e pela sonoplastia. Diria, contudo, que a mise en scène apostou alto demais no que os atores poderiam oferecer em tempo tão curto para a montagem do espetáculo. A referência ao teatro japonês, ao Butô, aos Mangas e Animes exigia deles um movimento corporal preciso, o que não foi simples em princípio. Dispus-me a acompanhar o espetáculo em três momentos significativos: um, no início da temporada; outro, no meio-tempo; enfim, um terceiro, no último dia do que espero ser apenas a primeira temporada. Dessa forma, fui percebendo um paulatino amadurecimento dos atores em cena, os quais, vale ressaltar, assumiram honesta e bravamente a proposta dos encenadores, a despeito do contexto particular em que a peça foi erigida. No início da temporada, apesar de não ter havido nenhum grande contraste no trabalho dos intérpretes, o que seria desfavorável à cena, percebia-se que Jorge de Paula, com excelente trabalho corporal e expressões precisas e sutis, conferia plasticidade e emoção mais condizentes com a proposta da encenação. Faltava a Antônio Rodrigues essa mesma precisão dos gestos, a fim de poder chegar à simetria que a cena pretendia expressar.
Quanto a Eduardo Japiassú (que faz a entrada mais glamourosa da Madame, de todas as encenações que já vi desse texto), percebia-se que o ator não mantinha um trabalho afinado com a interpretação que Jorge de Paula oferecia da personagem Clara. Explico melhor o comentário. Ao longo da peça, Clara está interpretando, as mais das vezes, o papel de Madame. Certamente, essa interpretação tange o caricatural, o que mostra terem sido os encenadores fiéis à proposta do texto de Genet, quando se refere a Clara: son geste - le bras tendu - et le ton seront d’un tragique exaspéré. Acreditamos que Eduardo Japiassú deveria ter mantido um diálogo mais intenso com Jorge de Paula, a fim de que suas personagens pudessem oferecer certa similaridade, ou melhor, que a personagem da Madame contivesse índices já previstos pela imitação caricatural de Clara, haja vista o jogo de espelhos presente na peça. Não houve isso naquele momento. Mas da última vez que assisti ao espetáculo, constatei que tanto o trabalho de Antônio Rodrigues quanto o de Eduardo Japiassú se transformaram para melhor. O primeiro adicionou expressões sutis, sem redundar em mera histrionice; além disso, alcançou um desenho corporal mais afinado com o de seu colega de cena, Jorge de Paula. Eduardo Japiassú, por sua vez, buscou no trabalho vocal a afetação necessária, naquele contexto, à Madame, dando maior realce à sua personagem.
A iluminação e a sonoplastia são, também, os pontos altos do espetáculo. O trabalho de Marcelo Sena demonstrou pesquisa da música japonesa para chegar ao efeito pretendido pelos encenadores. Mais particularmente, o maior mérito da sonoplastia foi o de estar a serviço do ritmo da trama, acentuando momentos significativos da ação dramática. Quanto à iluminação, optou-se por um clima sombrio, o que era realçado pela cor predominante do cenário, preto e branco. Também a iluminação realçava a referência aos Mangas e Animes, valendo-se, para tanto, de técnicas cinematográficas, como o close-up. Só para citar um exemplo, a cada estranha pista que a Madame ia encontrando em seu aposento, a luz focalizava-se no rosto de cada criada, gerando um efeito ótico correspondente, no cinema, ao efeito gerado pela edição e pela montagem. A luz, assim, contribui para sublinhar o caráter pop que o texto de Genet ganhou nessa montagem da Cênicas Companhia de Repertório.
A propósito do texto, a tradução portuguesa oferecida neste espetáculo constitui, a meu ver, o único senão da montagem. A justificativa dada por Romildo Moreira, um dos responsáveis pelo Concurso especial de Montagem Jean Genet, concedido pelo FUNDARPE, foi que o texto era o único de língua portuguesa catalogado e autorizado pelo Instituto Jean Genet, responsável pelos direitos autorais da obra do dramaturgo. De fato, não temos nenhuma tradução brasileira oficial. No entanto, soa muito estranho o uso de determinados elementos morfossintáticos, porque distantes da nossa realidade lingüística. Assim, quando Clara, representando a Madame, diz a Solange: vous êtes hideuse, ma belle, a tradução que ouvimos no palco é: tu és repelente, minha linda. Por mais que no dicionário o sentido de repelente seja o de repugnante, trata-se de um uso que faz muito mais sentido em Portugal do que em nosso contexto. Outro realce teria essa fala se substituíssemos, por exemplo, tal palavra por horrenda, ou mesmo repugnante. Como és horrenda, minha linda expressa muito mais a força da antítese contida no original francês, pelo jogo das palavras hideuse/belle. Isso para não mencionar o uso do infinitivo no lugar do gerúndio, traço característico da sintaxe portuguesa de Portugal. Justiça seja feita: o grupo se empenhou, no que foi possível, em adaptar para nosso uso lingüístico muitas das expressões portuguesas que certamente não seriam bem compreendidas pelo público local. Mas o texto ainda continua pesadamente lusitano.
Sendo essa última questão algo que extrapola o trabalho do grupo, as Criadas de Marcondes Lima, Kleber Lourenço e da Cênicas Companhia de Repertório merecem nossos aplausos, por apresentar ao público recifense, numa linguagem cênica original, uma belíssima interpretação do universo abissal de Jean Genet. Que no próximo ano o espetáculo retorne aos palcos numa nova temporada, oferecendo, assim, prazer garantido.




* Professor de Literatura Dramática. Doutorando em Teoria da Literatura, com ênfase em Literatura Dramática.



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AGENDE-SE


FESTIVAL PALCO GIRATÓRIO

"AS CRIADAS" de Jean Genet
Por Macondes Lime e Kleber Lourenço
Com Antônio Rodrigues. Eduardo Japiassu e Jorge de Paula

TEATRO CAPIBA - SESC CASA AMARELA

DIA 18 de abril às 20:00h

***ÚNICA APRESENTAÇÃO***

NÃO PERCAM!!!

Um comentário:

felipetmendes disse...

bom...
meu nome é Felipe
faço teatro a dois anos
em joinville, e eu e mais alguns
amigos vamos começar um novo grupo de teatro, e gostariamos de saber se não poderiam mandar o texto,de as criadas para o meu email felipetmendes@gmail.com desde já agradeço.