sábado, 21 de abril de 2007

O CÍRCULO DE GIZ CAUCASIANO




COMPANHIA DO LATÃO EM RECIFE



Quem foi conferir nesta sexta-feira dia 20 de abril, mesmo debaixo de um dilúvio a montagem O CÍRCULO DE GIZ CAUCASIANO, tradução de Manuel Bandeira e montagem dirigida por Sérgio de Carvalho que valoriza a força poética do texto original de Bertolt Brecht, pode conferir um dos grandes exemplos da nova safra do teatro nacional no momento. A companhia que completa 10 anos mostra o porque do respeito e da credibilidade adquirida durante todos esses anos. Com elenco afinado e direção primorosa o texto de Brecht, montado em homenagem aos 50 anos de ausência do escritor(Ago/1956), ganha uma montagem que chega até aqueles que a assistem de maneira contudente e poética.


Segue abaixo uma crítica por Beth Néspoli.

Recado político de Brecht, levado em espetáculo tocante
Cia. do Latão demonstra raro domínio da linguagem épica em montagem brilhante de O Círculo de Giz Caucasiano



Na montagem de O Círculo de Giz Caucasiano o primeiro e forte impacto positivo vem com a pertinente recriação do prólogo, que vai além da mera atualização temporal ou temática. Embora tome apenas sete das mais de cem páginas dessa peça de Bertolt Brecht, é recurso dramatúrgico de fundamental importância porque dá sentido e justifica o espetáculo que será apresentado e, mais amplamente, a própria arte. Tal função não escapou ao diretor Sérgio de Carvalho, pelo contrário, sua versão atualiza o essencial - a conexão entre vida e arte.


No original, o prólogo flagra um litígio por um pedaço de terra entre camponeses da antiga União Soviética. A decisão final - toma posse do vale não quem o possuía por direito legal, mas quem projetou irrigá-lo e fertilizá-lo - será comemorada com a representação de uma peça que, obviamente, tem como objetivo reforçar, ludicamente, a validade do conceito de justiça aplicado na decisão - o bem é de quem o merece - e, sobretudo, mostrar a impossibilidade de que tal justiça seja aplicada numa sociedade baseada no poder econômico e na propriedade privada, a não ser como exceção.


Ao escolher um assentamento do MST, em Sarapuí, SP, para ambientar o prólogo, o diretor não o faz para 'atualizar' o litígio, transformando camponeses soviéticos em 'assentados', o que truncaria sentidos, mas sim une atores e assentados em torno de uma discussão sobre o texto. A edição desse encontro, projetada no teatro, é bastante eloqüente seja pelas imagens, como o contraste entre a aridez do pasto cheio de tocos de árvores e a parte já irrigada do assentamento - que parece nos dizer que ali foi aplicado o conceito de justiça em questão - seja pelas palavras, uma vez que os próprios assentados se dão conta da diferença entre a realidade retratada no texto e a 'exceção' na conquista deles.




A revitalização do prólogo refunda o sentido da representação que se segue - uma lenda de origem chinesa sobre a disputa de um menino entre sua mãe de sangue e sua mãe de criação. Não por acaso, Brecht deixa bem claro que será um prestigiado e experiente cantor e poeta o responsável pela encenação. Recado do autor? Se os objetivos políticos-pedagógicos de Brecht são inequívocos - mascará-los é tudo que jamais quis, pelo contrário - ele também sabia que só seriam alcançados com bom teatro. E é exatamente isso o que nos oferece a Cia. do Latão.

Antes de mais nada, o longo exercício da linguagem épica reflete-se positivamente no palco, na leveza com que se faz em cena o trânsito entre drama e a narrativa. É admirável o domínio alcançado pelos atores do Latão nessa estética, especialmente Helena Albergaria e Ney Piacentini, que ora vivem plenamente os sentimentos e contradições dos personagens - trazendo à tona uma incrível gama deles - ora são atores/narradores, num trânsito que flui de tal forma que o espectador é conduzido ao mesmo movimento, da emoção ao distanciamento crítico, prazerosamente.

Sérgio de Carvalho optou por abrir mão das rígidas máscaras sugeridas no texto. Como tem um elenco de onze atores muito afiados - Rogério Bandeira, Luís Mármora, Rodrigo Bolzan estão entre os que vieram de outras companhias e se integraram perfeitamente à linguagem do Latão - os personagens ganharam em humanidade sem prejuízo de idéias que se pretende demonstrar.


A montagem consegue ser tão cristalina quanto o texto ao demonstrar o funcionamento do jogo das forças políticas e a ação desse jogo sobre os indivíduos. Entre as qualidades dessa montagem destaca-se a música, executada ao vivo, elemento fundamental na condução da trama. A direção musical de Martin Eikmeier é nada menos do que brilhante e o resultado é tão harmônico que, paradoxalmente, a música não desvia a nossa atenção para ela. Grande texto em encenação feliz da Cia. do Latão, O Círculo de Giz Caucasiano é espetáculo que toca, a um só tempo, corações e mentes, deleite intelectual e emocional. Como queria o autor.
Beth Néspoli
"Um dos Grandes momentos nos palcos pernambucanos esse ano"

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