OLHARES CRÍTICOS - FRTN 2010
Por Valmir Santos e Daniel Schenker
Por Valmir Santos e Daniel Schenker
Simplesmente eu, Clarice Lispector
Migrações da escrita, da fala e da escuta
Por Valmir Santos
Falar diretamente ao outro é sina na obra clariceana. Daí a frequência de monólogos no teatro que dão voz a personagens, narradores, relatos biográficos e autobiográficos sempre na esperança de construir a ponte até o espectador com o conhecido esmero com que a autora alcança o leitor no silêncio e nas turbulências da leitura. A atriz Beth Goulart conjuga a primeira pessoa em meio às tramas de "Simplesmente Eu, Clarice Lispector". Não basta transpor a palavra da página para a cena. É preciso mimetizar a carne e o verbo - para tocar à espiritualidade sublinhada nesse espetáculo autoral em seu sentido mais amplo, quando a escrita de cena corresponde às ambições estéticas e à visão de vida da intérprete e diretora.
Divisamos a persona de Beth Goulart, uma mediadora apaixonada de Clarice Lispector, à vontade no palco com suas Joanas, Loris, Anas e outras mulheres desse universo. O caminho é o da essencialidade. O espaço cênico comunica a ideia da página em branco, a parede de treliças ao fundo, como uma concha que guarda pérolas. Mistérios. Uma cadeira e um divã, cada um numa extremidade, equilibram a imagem do vazio. É nessa plataforma simbólica que sucedem os quadros em fusão, com a atriz retirando e devolvendo suas composições a esse papel preenchido, esvaziado, arremessado.
Para além da plasticidade sutil da cenografia (por Ronald Teixeira e Leobruno Gama) e do desenho de luz (por Maneco Quinderé), a alteridade vem manifestada por meio do gesto, da voz e do canto. São nessas partituras que a atriz projeta a musicalidade da encenação, notadamente no gesto alongado das mãos e no intento de caracterizar a fala real de Lispector: o sotaque pela ascendência ucraniana e a anomalia congênita pela língua presa. Eis o coração do problema do espetáculo.
Como sua matéria-prima é a palavra, e é do manejo dela que vinga a singularidade da linguagem da arte literária visitada, essa opção estorva. O sotaque acentuado, por si, aproxima do caricatural e subtrai clareza, desvia o espectador em vários momentos. A deficiência oral de Lispector também soa banalizada, um dado pessoal que a ficcionista evidentemente sublinhou na obra. Talvez merecesse citação, não a exposição obsessiva. A própria montagem contrasta essa escuta quando Goulart recua para a sua voz de intérprete – que é outra e é Goulart - e com ela encarna justo os instantes mais rituais como se espera do encontro teatral.
Em "Simplesmente Eu, Clarice Lispector", as palavras que acessam lugares e imaginários são as mesmas que nos distanciam na dicção, no modo de enunciá-las . O talento e a técnica de Beth Goulart nos transportam, sem dúvida. Um pouco mais de recuo do seu objeto do desejo a deixaria numa zona mais neutra e desenvolta para dançar e reverberar a mística clariceana com a mesma verdade com que nos dá a entender que a abraça.
Simplesmente Eu, Clarice Lispector
Aura de refinamento
Por Daniel Schenker
Uma tensão atravessa a interpretação de Beth Goulart no monólogo Simplesmente Eu, Clarice Lispector. Ao mesmo tempo em que seu trabalho tende a suscitar efeito algo hipnótico sobre o espectador, seduzido pela partitura suave da atriz, há uma proposta de composição que permanece em evidência, principalmente no que se refere à uma construção vocal que não se dissolve de modo orgânico ao longo da apresentação.
Uma tensão atravessa a interpretação de Beth Goulart no monólogo Simplesmente Eu, Clarice Lispector. Ao mesmo tempo em que seu trabalho tende a suscitar efeito algo hipnótico sobre o espectador, seduzido pela partitura suave da atriz, há uma proposta de composição que permanece em evidência, principalmente no que se refere à uma construção vocal que não se dissolve de modo orgânico ao longo da apresentação.
Beth Goulart busca a musicalidade das palavras, numa alternância de ritmo, volume e intensidade da voz na mesma frase que periga tangenciar o preciosismo. Mas não seria justo reduzir sua atuação a uma forma destituída de preenchimento. A atriz se apropria de Clarice Lispector, deseja atingir a alma sensível da personagem. Imprime uma aura de refinamento e evolui pelo espaço com a leveza de uma pluma, provocando no público uma agradável sensação de refrigério.
Seu registro interpretativo surge apoiado, em parte, no contraste entre uma composição mais carregada, utilizada na encarnação de Clarice, e a busca por uma naturalidade ao visitar o universo da escritora. Mas são nos momentos mais discretos que Beth Goulart potencializa sua presença. Ao abordar o sentido da obra de arte como procura pelo desconhecido, a atriz caminha até a frente do palco e estica o braço, como se quisesse tocar matéria impalpável, valorizando, sem incorrer na armadilha da ilustração, sua fala. Outro instante que merece destaque é aquele em que discorre, praticamente imóvel, sobre o desejo de ir ao encontro do que existe em si.
A cena proposta em Simplesmente Eu, Clarice Lispector, espetáculo que conta com supervisão de Amir Haddad, evidencia rigor e integração conceitual. Variações de branco e de bege imperam no palco, até que as cores mais fortes vão sendo, pouco a pouco, inseridas através de um objeto (um copo), de adereços de figurinos, de vestidos em tonalidades mais exuberantes e de uma iluminação que evolui da neutralidade das variações de claro (com espaço para certa nostalgia suscitada pelo sépia) para uma explosão de vermelho. Absolutamente entrosados, os componentes técnicos podem ser mencionados em seus valores individuais: a evocação do passado nos móveis e elementos que compõem a cenografia de Ronald Teixeira e Leobruno Gama, que traz ainda uma cortina de tiras de onde a atriz retira peças de roupa que parecem suspensas no ar, a classe e o bom gosto dos figurinos de Beth Filipecki, o choque entre o recorte do corpo e a amplidão do espaço propiciado pela iluminação de Maneco Quinderé e a trilha sonora, criada por Beth Goulart e composta por Alfredo Sertã, que procura traduzir a complexidade de sensações que dominavam Clarice Lispector. Uma artista captada no texto por meio do trânsito entre o divino e o cotidiano (oposição que resulta algo esquemática apenas no trecho em que responde a uma entrevista). Fascinada diante da descoberta do mundo, é engolida pela natureza sem deixar de se perceber integrada a ela, como fica explícito em toda a sequência tomada por imagens do Jardim Botânico.
Senhora dos Afogados
A busca da síntese através de Nelson Rodrigues
Por Daniel Schenker
Senhora dos Afogados vem exercendo fascínio sobre os encenadores brasileiros. Basta dizer que nos últimos anos o texto foi alvo de montagens de Antunes Filho, Zé Henrique de Paula e Ana Kfouri. Cada um desses espetáculos lançou um olhar diverso sobre a peça de Nelson Rodrigues e evidenciou um estágio nas pesquisas dos encenadores (a partitura vocal em Antunes, a inserção da música em Zé Henrique, a busca por um espaço não-convencional que potencialize a força do mar no texto, no caso de Ana). Agora, a Cênicas Cia. de Repertório, de Recife, mostra uma nova versão, a cargo do diretor Érico José, que investe numa cena despida de adereços e centrada na interpretação dos atores.
Senhora dos Afogados vem exercendo fascínio sobre os encenadores brasileiros. Basta dizer que nos últimos anos o texto foi alvo de montagens de Antunes Filho, Zé Henrique de Paula e Ana Kfouri. Cada um desses espetáculos lançou um olhar diverso sobre a peça de Nelson Rodrigues e evidenciou um estágio nas pesquisas dos encenadores (a partitura vocal em Antunes, a inserção da música em Zé Henrique, a busca por um espaço não-convencional que potencialize a força do mar no texto, no caso de Ana). Agora, a Cênicas Cia. de Repertório, de Recife, mostra uma nova versão, a cargo do diretor Érico José, que investe numa cena despida de adereços e centrada na interpretação dos atores.
Trata-se, sem dúvida, de uma proposta corajosa. O encenador insere relativamente poucos elementos (uma mesa, duas cadeiras, uma estrutura espelhada), impedindo que os atores utilizem objetos cenográficos como eventuais bengalas. No que se refere ao registro de atuação do elenco, cabe destacar um esforço em afastar os atores da declamação, da impostação, da intensidade forçada, da dramaticidade bombeada na voz. O resultado é irregular, com destaque para a atriz que interpreta Moema (no programa, os integrantes do elenco são apresentados em conjunto, sem identificação individual em relação às personagens).
Em todo caso, sobressai o cuidado de Érico José no que se pode denominar de uma procura pela síntese, evidenciada tanto na limpeza do espetáculo quanto na seleção das ações praticadas pelo elenco. O diretor faz com que os atores materializem fisicamente o jogo de espelhamento, central em Senhora dos Afogados: espelhamento entre mãe, Dona Eduarda, e filha, Moema, atadas por pulsões de morte, imperantes na família Drummond. Moema ambiciona o lugar de Eduarda ao lado do pai, Misael, e se mostra cada vez mais obcecada pelo desejo de eliminar a mãe.
Mas o desaparecimento de Eduarda não é suficiente para apagar a sombra dela sobre Moema, personagem destituída de uma existência autônoma. Não por acaso, as atrizes que interpretam Eduarda e Moema realizam movimentos em sincronia, como as mãos entrelaçadas numa das primeiras cenas da montagem ("As mãos – são elas que me unem à minha mãe", exclama Moema). O corpo é personagem relevante em Senhora dos Afogados, seja devido à força primitiva que ocasionalmente invade a cena, seja em virtude dos discretos gestos que sugerem a potência da sexualidade reprimida ("Moema, nós temos a loucura na carne", diz Paulo).
A austeridade desponta como nota comum nas principais escolhas do espetáculo. Os figurinos de Marcondes Lima recobrem os atores de tecidos lisos, em tons escuros e fechados, diferentemente do coro, que surge em cores mais vivas. A iluminação de Luciana Raposo valoriza o contraste entre claro/escuro, deixando parte dos rostos dos atores na penumbra, e recorta os espaços privados da casa da família Drummond onde se desenrolam os conflitos. A cenografia de George Cabral conta, além dos espaços privados demarcados com fita, com uma estrutura de dois andares menores que o palco que propiciam um afunilamento da ação. No último andar, o coro, num dado instante, observa, impassível, o desenrolar dos confrontos, lembrando a presença das divindades nas tragédias gregas – e como foram perdendo importância à medida que as personagens conquistaram poder de decisão sobre seus atos, deixando de ser fantoches nas mãos dos deuses. Em Senhora dos Afogados, as personagens não são comandadas por eles, mas permanecem inacabadas, encarceradas em suas próprias loucuras.
O Amor de Clotilde por um certo Leandro Dantas
A sedução do resultado imediato
Por Daniel Schenker
Até que ponto é possível se relacionar com o melodrama de outra forma que não através do riso? Ainda é viável para o espectador atual levar a sério e até se emocionar com folhetins repletos de exagerados golpes emocionais? As perguntas não visam a reduzir o alcance e a importância do humor – valendo lembrar, inclusive, divertidíssimas apropriações do melodrama (como a montagem do Núcleo Carioca de Teatro para A Maldição do Vale Negro, de Caio Fernando Abreu e Luiz Arthur Nunes, no final da década de 80, só para citar um exemplo) – e sim a lançar questões sobre os eventuais limites de um gênero de época nos dias de hoje.
Até que ponto é possível se relacionar com o melodrama de outra forma que não através do riso? Ainda é viável para o espectador atual levar a sério e até se emocionar com folhetins repletos de exagerados golpes emocionais? As perguntas não visam a reduzir o alcance e a importância do humor – valendo lembrar, inclusive, divertidíssimas apropriações do melodrama (como a montagem do Núcleo Carioca de Teatro para A Maldição do Vale Negro, de Caio Fernando Abreu e Luiz Arthur Nunes, no final da década de 80, só para citar um exemplo) – e sim a lançar questões sobre os eventuais limites de um gênero de época nos dias de hoje.
O Amor de Clotilde por um certo Leandro Dantas, montagem da Trupe Ensaia Aqui e Acolá inspirada no romance A Emparedada da Rua Nova, de Carneiro Vilela, ambiciona o riso da plateia. Ainda assim, a encenação dirigida por Jorge de Paula investe numa oscilação entre a comicidade e um registro que tangencia longinquamente o dramático, a julgar pelo clímax da história sobre uma jovem apaixonada por um bon vivant que sofre com a investida de um primo inescrupuloso.
Essa interessante alternância de tons, porém, não é preponderante no espetáculo, que busca uma graça de resultado direto junto ao público. O diretor Jorge de Paula (também integrante do elenco) não hesita em fazer concessões, marcadamente nos números que evocam filmes de sucesso (sejam melodramas românticos de diferentes épocas, como ...E o Vento Levou e Titanic, sejam clássicos que sobrevivem à passagem do tempo, como Psicose) e recorrem ao cancioneiro brega.
São citações desvinculadas do texto e da teatralidade da cena que banalizam o resultado de O Amor de Clotilde por um certo Leandro Dantas, na medida em que se constituem como barganha ao riso fácil do espectador. Nesses momentos, ao invés de brincar com clichês, a encenação revela filiação ao lugar-comum – por mais que o elenco execute com competência as coreografias e revele domínio sobre a evocação do melodrama, sem enveredar pela caricatura desmedida na relação com o texto.
Principal elemento da cenografia de Jorge de Paula, a cortina de teatro realça a sátira aos estereótipos da representação e os demais elementos (cubos, objetos em cores vibrantes) trazem à tona certo universo infanto-juvenil. O formato de arena de circo, onde se desenrola a maior parte das cenas, remete ao mundo do circo-teatro, somado às pequenas lâmpadas que emolduram a ribalta. Mas a iluminação de Sávio Uchôa acaba servindo mais às sequências feéricas escoradas numa sucessão de hits do que à lembrança de entretenimentos artesanais de décadas passadas. Os figurinos de Marcondes Lima são constituídos por expressivas sobreposições de panos em criações que não se limitam a um mero acúmulo de estampas.
Apesar das qualidades apontadas, O Amor de Clotilde por um certo Leandro Dantas abre mão de boa parte de suas especificidades em decorrência de uma cruzada em prol da interação imediata com a plateia.
A Farsa do Poder
A cena é do ator
Por Daniel Schenker
Numa época em que o teatro expande seus territórios e limites através da conexão com outras manifestações artísticas e, especialmente, da incorporação das ferramentas do multimídia, é saudável testemunhar iniciativas que defendem uma cena norteada a partir de uma busca pelo essencial – por uma noção de essencial entendida como síntese. O grupo Osfodidário, de João Pessoa, se vale de poucos elementos em A Farsa do Poder, livre adaptação da obra homônima de Racine Santos. Em cima de um tablado, erguido dentro da galeria de acesso ao metrô, os atores fazem seu trabalho contando "apenas" com o auxílio de máscaras e instrumentos musicais.
Numa época em que o teatro expande seus territórios e limites através da conexão com outras manifestações artísticas e, especialmente, da incorporação das ferramentas do multimídia, é saudável testemunhar iniciativas que defendem uma cena norteada a partir de uma busca pelo essencial – por uma noção de essencial entendida como síntese. O grupo Osfodidário, de João Pessoa, se vale de poucos elementos em A Farsa do Poder, livre adaptação da obra homônima de Racine Santos. Em cima de um tablado, erguido dentro da galeria de acesso ao metrô, os atores fazem seu trabalho contando "apenas" com o auxílio de máscaras e instrumentos musicais.
Há uma certa aparência de rascunho presente na montagem. Impressão verdadeira, evidenciada, por exemplo, nos figurinos, a cargo das atrizes Dudha Moreira e Fabíola Morais, compostos por uma malha-base preta e por adereços, dispostos como breves sugestões que resumem os personagens numa proposta estética que sinaliza opção pela simplicidade. E impressão falsa, na medida em que houve toda uma etapa de preparação prévia, detectada nas performances dos atores e na utilização precisa dos instrumentos no acompanhamento das cenas.
Numa montagem que não conta com aparatos visuais capazes de deslumbrar as retinas dos espectadores, os atores dominam o palco. O destaque à figura do ator, que se serve do texto para realizar o seu jogo junto ao público, pode remeter à commedia dell'arte. Filiados à tradição do cômico popular, os atores procuram interpretar no extremo – registro estimulado pelo próprio uso das máscaras, que cobrem metade dos rostos –, numa demonstração de potência (detectada através do gestual expansivo, da composição de vozes e da agilidade auxiliada pelos joelhos arqueados) que não deve ser confundida com mero histrionismo.
Infelizmente, a apresentação de A Farsa do Poder foi, em parte, prejudicada pela dispersão do som ambiente da galeria do metrô. Mesmo que o espetáculo tenha sido concebido para a rua, e que o elenco esteja acostumado a lidar com toda sorte de acasos de um ambiente sobre o qual não detém controle, não era fácil estabelecer sintonia com os atores em espaço tão destituído de possibilidade de concentração. Fica difícil saber se o fato de a graça se impor na segunda metade, quando os personagens se engajam na transformação de um cabaré em posto de saúde, se deve a uma irregularidade de texto e/ou da encenação ou se tão-somente a problemas relacionados ao espaço.
Ainda assim, cabe destacar a presença endiabrada de Thardelly Lima, como Ferreirinha. Na tarde da apresentação de sábado, a máscara do ator rompeu, obrigando-o a atuar sem ela durante o terço final da encenação. Talvez o ator tenha procurado compensar a falta da máscara através da expressão facial. Seja como for, o seu trabalho lembrou que o rosto do ator nunca pode permanecer relaxado por trás da máscara, por mais expressiva que esta seja. Não há, nesse sentido, transferência de funções.
Os Fuzis da Senhora Carrar
Questões de fala em Brecht
Por Daniel Schenker
Algumas das principais plataformas do teatro de Bertolt Brecht vêm à tona na montagem de João Denys para Os Fuzis da Senhora Carrar, especialmente no que se refere à relação entre público e espetáculo ambicionada pelo dramaturgo. Não por acaso, os atores sentam-se na primeira fileira como se fizessem parte da plateia e realçam falas e gestos com o provável intuito de sensibilizar os espectadores para determinadas questões caras a Brecht. A principal delas é a discussão centrada no contraste entre neutralidade e tomada de posição num contexto de guerra a partir de uma personagem como Teresa Carrar, que não mede esforços para evitar que seus filhos migrem para o front de batalha.
A qualidade de presença contundente dos atores/espectadores evidencia o modo como Brecht gostaria que o público assistisse às encenações de seus textos: munido de consciência crítica. Brecht não era exatamente contra a adesão emocional do espectador, contanto que esta não implicasse numa apreciação passiva, destituída de uma dimensão reflexiva. Para impedir que a plateia conferisse os espetáculos de maneira alienada, como que tomando como verdade a ficção apresentada, Brecht procurou colocar em prática mecanismos de distanciamento entre ator e personagem (não por acaso, o mesmo ator se desdobra, com frequência, em mais de uma personagem).
Por provável desejo de evidenciar fidelidade aos preceitos de Brecht, parte do elenco dessa dedicada encenação de Os Fuzis da Senhora Carrar sublinha com didatismo excessivo as palavras, investindo num contundente modo de dizer e incorrendo numa intensidade interpretativa (concentrada na voz) que soa artificial. Apesar do problema não acometer todos os integrantes do elenco (destaque para o bom trabalho de Roger Bravo), trata-se de uma tendência que cabe destacar para, quem sabe, ser reavaliada por diretor e atores.
Fiel a Brecht, o diretor João Denys revela os procedimentos teatrais, ao invés de ocultá-los, lembrando o espectador de sua condição de espectador e de sua presença no teatro. Não por acaso, o público vê Teresa Carrar esfregando pó na roupa, para torná-la envelhecida e atores levando uma jarra de água para uma personagem lavar as mãos num dado momento. O mecanismo de construção está propositadamente à mostra numa cena crua, composta por poucos elementos (mesa, cadeira, bancos, janela suspensa), dispostos sobre um tablado, todos em madeira clara. A constância da marcação frontal também pode ser vista como uma disposição que tende a favorecer o confronto do público com as palavras de Bertolt Brecht.
O Circo sem teto da lona furada dos bufões
Musicômicos
Por Valmir Santos
Em sua experiência com teatro para criança, a banda Dona Zefinha, de Fortaleza, une a vocação performática que lhe deu reconhecimento no palco à máscara universal do palhaço. A música rouba a cena, naturalmente, e libera os atores/cantores/tocadores para conciliar instrumento e voz com o espírito mambembe do artista popular centrado na expressão física – mínima que seja, no caso. O título enuncia uma imagem tão improvável quanto atraente: O Circo sem Teto da Lona Furada dos Bufões. Piada pronta ao quadrado quando a sessão do espetáculo é agendada para uma casa de 150 anos, de feições neoclássicas, caso do Teatro de Santa Isabel. E o quinteto, no entanto, supera a distância do palco frontal, encolhe a vastidão das frisas nas alturas e ganha sua plateia para uma relação mais entrosada do que a arquitetura supunha.
Dona Zefinha desfia um roteiro tão fuleiro quanto a rima pobre que emenda ou a comicidade que defende. Isso tem a ver com a crítica às condições do artista de circo no Nordeste, não é de hoje. Falam do lugar que conhecem. A aparente despretensão dá unidade ao projeto concebido e dirigido por Orlângelo Leal, também intérprete. Ele faz às vezes de um mestre de cerimônia que sampleia os chavões dos números e discursos tradicionais do circo. Esta arte é homenageada sem idealizações estilísticas. Antes, destaca a reverência e a irreverência ao remendo da lona e a coragem do palhaço em fazer rir independente das circunstâncias adversas da atividade escolhida ou muitas vezes hereditária.
Leal, Ângelo Márcio, Paulo Orlando, Joélia Braga e Samuel Furtado interagem com adultos acompanhantes com a mesma capacidade com que conquistam as crianças. Há alguns aspectos, porém, que merecem lapidar. Como exercitar a fundo a bufonaria que evoca no título. Ela ainda soa correta. Ou estruturar uma dramaturgia, um norte narrativo em que a musicalidade inerente ao gênero desenhasse espaços e tempos com mais autonomia. Alguns momentos acenam para isso, como o da bailarina travestida em seu vestido rosa, nariz de palhaço e sapatos agigantados na ponta dos pés, um tipo cômico daqueles que podem levar o braço teatral da Zefinha a evoluir para uma linguagem de traços cênicos mais sólidos e conversar com a música no mesmo nível. Música que, inclusive, abafa parte dos diálogos e causa ruídos, apesar (ou por causa) dos microfones individuais. Pela canja que deu nas cordas, sopros e gags, o núcleo cearense mostra potencialidades para aprimorar sua pesquisa no campo dos musicais para crianças de todas as idades e seguir fazendo da convergência a sua diferença.
Rebú
Orquestra de espasmos e espantos
Por Valmir Santos
No país que cultua a telenovela como poucos, a Companhia Teatro Independente, do Rio, esmera-se na pesquisa empenhada do melodrama. Rebú descortina todos os elementos constitutivos daquela expressão esparramada do popular, a toada sentimental e patética, o elogio do artifício escancarado diante de um espectador tangido pela contenda do bem contra o mal. Para começo de conversa, uma pergunta tão longa como aqueles gestos dos atores afins: como expor os mecanismos tipificados da interpretação e do texto, no limite do didatismo, sem macular a fruição do espectador que está ali para se deixar enredar, emocional e poeticamente, se assim os artistas o permitirem? A encenação e a dramaturgia respondem à empreitada com inteireza. Surpreende a segurança com que o núcleo de jovens artistas experimenta e atualiza esses recursos longevos estando apenas na sua segunda montagem – não por acaso, sucessora da verve rodriguiana que nutriu Cachorro!.
O rebuscamento das palavras, o exagero físico, o preto, o branco e a mistura deles, o cinza, dominantes na plasticidade dos figurinos, do cenário e do desenho de luz, tudo indica o protocolo melodramático cumprido à risca. E, no entanto, o autor Jô Bilac, o diretor Vinicius Arneiro e o quarto de atores encontram brechas entre as amarras pressupostas, vazam originalidades. Ao assumirem as regras do jogo, os criadores a subvertem com o binômio limpeza/clareza com que arquitetam essa história reconhecível em qualquer esquina do mundo. Uma peleja entre mulheres, esposa e cunhada, sob mediação aparvalhada do marido. E um ingrediente absurdo esquenta de vez essa intriga de inveja e perfídia: um bode de estimação. Essa figura, humanizada com requinte por Diego Becker - que dispensa a imitação e se dá a ver com a dissimulação dos homens de terno e gravata dito civilizados -, desestabiliza de vez as relações da peça, cria um estranhamento na recepção do público que percebe as convenções passionais com distanciamento. A natureza do conflito animal é redimensionada pela tensão do melodrama com o absurdo, e vice-versa, dotando a comédia de outras camadas.
Mas o grau de elaboração formal de Rebú renderia pouco se não contasse com um elenco comprometido com o processo. Carolina Pismel prima pela síntese com que encarna o reconhecível e o abjeto para encontrar com originalidade sua terceira via da mulher submissa e depois vingativa. É dela a voz mais bem resolvida. Seus pares evidenciam deficiência de articulação que fere o entendimento em certas passagens em palco italiano. Na sessão vista em São Paulo, o espaço cênico de poucos metros quadrados, circunscrito por refletores, propiciava ambiente de câmera que ampliava os efeitos de cena. Em Recife, tudo isso está sob o tablado e Julia Marini e Paulo Verlings se ressentem justo na travessia vocal desse vão. Senões compensados com afinco pelo conjunto de integrantes dessa orquestra de espasmos e espantos que sabe valorizar a música do silêncio equilibrada à trilha sinfônica nos transbordamentos do trágico e do cômico. Um espetáculo popular com erudição.
As Conchambranças de Quaderna
As peripécias de um irresistível Quaderna
Por Daniel Schenker
A intimidade de Inez Viana com o universo de Ariano Suassuna foi mais que decisiva para o ótimo resultado alcançado na montagem de As Conchambranças de Quaderna. A diretora somou elementos acertados. O principal deles: os painéis por trás dos quais as personagens surgem e desaparecem, recurso simples, mas eficiente e expressivo, que injeta agilidade à encenação.
Encontrar o tempo de humor foi uma preocupação da direção de Inez Viana, que procurou casar velocidade com colorido no modo de dizer os textos de Suassuna (Casamento com Cigano pelo Meio e A Caseira e a Catarina – O Processo do Diabo). Os atores encontram as necessárias agilidade e fluência. Formam um grupo surpreendentemente homogêneo, no qual se destaca Débora Lamm – e, logo em seguida, Leonardo Brício, Dani Barros e Ricardo Souzedo. Se cabe fazer alguma restrição às interpretações, esta se refere a uma certa constância em tentar extrair graça do contraste entre graves e agudos da voz.
Nada, porém, que nuble o rendimento satisfatório de todos, hábeis em projetar reações instantâneas no corpo, qualidade que potencializa as personagens de Ariano Suassuna, muito brasileiras na malícia de se multuplicar não só para alcançar os objetivos pretendidos, mas como forma de sobrevivência (em especial, Quaderna, protagonista de A Pedra do Reino). Pode-se, claro, traçar analogias entre Suassuna e o mundo da dramaturgia popular, valendo mencionar a galeria de criados de Molière e a recriação de Goldoni dos tipos da commedia dell`arte em Arlequim, Servidor de Dois Patrões. Os textos são bem vivos, sendo que o ritmo de Casamento com Cigano pelo Meio é ainda mais azeitado que o de A Caseira e a Catarina, que se alonga um pouco, apesar da figura do juiz ser absolutamente irresistível.
As Conchambranças de Quaderna lança um Brasil alegre como proposta estética. Num palco quase vazio, emoldurado por bandeiras e estandartes, surge a pequena mesa de Quaderna (cenografia de Nello Marrese). Variações de amarelo, laranja, rosa e vermelho, paleta harmônica escolhida para os figurinos (de Flavio Souza), preenchem a cena. A iluminação (de Renato Machado) transita entre a lembrança de um sertão solar (durante a maior parte do tempo) e a penumbra das romarias. A música, tocada ao vivo (direção musical de Marcelo Alonso Neves), realça o humor ao identificar os personagens por meio de sons específicos e produz uma atmosfera de romantismo e nostalgia.
Corte Seco
Montanha-russa
Por Valmir Santos
Quanto mais o teatro contemporâneo foge do drama, mais se aproxima dele (de outras formas). O discurso da cena pós-dramática, quando bem urdido, não deixa o espectador voltar para casa sem ser afetado por uma história. Não linear, estilhaçada, multiplicada, mas uma boa história. Caso das micronarrativas de Corte Seco, da Companhia Vértice de Teatro, do Rio de Janeiro. Em outras mãos, uma experiência como esta poderia se perder facilmente nas próprias encruzilhadas que propõe, tamanho os radicalismos envolvidos, a acumulação de metalinguagem, os desvios de toda ordem a que o público é cooptado. Sob direção de Christiane Jatahy e a pesquisa continuada que desenvolve há duas décadas, o espetáculo resulta bem fundamentado ao refutar a representação e conceber uma dramaturgia que fragmenta e expande sua territorialidade, conversa com o fluxo de consciência da literatura, o documentário do cinema e a vigilância ostensiva das câmeras de segurança. Delimitações do cotidiano, estímulos do imaginário.
Com a colaboração do autor e teatrólogo espanhol José Sanchis Sinisterra, influência decisiva na carreira de Jatahy, instaura-se uma ilha de edição à maneira do cinema e da televisão. Aqui, os planos, sequências e closes são determinados pelo acaso. A matéria-prima é a dramaturgia e suas noções retrabalhadas. Procedimentos aristotélicos, brechtianos e stanislavskianos, os matriciais, são revelados num ambiente de obra aberta. Supostamente aberta. "Alguém quer trocar de lugar comigo?", pergunta uma figura entre os seus e ao público, a certa altura. Verdades e versões são manipuladas pela marcação ao vivo da diretora ao microfone. Ela fica na lateral do palco com seus operadores de luz e trilha sonora, todos à vista e também contaminados pela intervenção na realidade costurada por dez atores tratados por nomes próprios em seus ires e vires, dentros e foras. Como as linhas de fita adesiva que riscam o tablado para lá e para cá. Ou na extrapolação do edifício teatral com imagens transmitidas da rua em frente.
São compassos para uma leve coreografia, uma dança das cadeiras correspondentes aos atos de narrar, dialogar, interiorizar, caracterizar, enfim, os verbos do ofício. Um fio de tramas soltas que se emendam lá pelas tantas. Intervalos ficcionais para os conflitos de um casal, de mãe e filha, de dois irmãos, de pai e filho, de memórias e rupturas em células familiares em que a partícula "se" surge instantânea ou retroativa para cutucar corações e mentes.
A presença de rostos conhecidos de telenovelas enriquece o sistema criativo que embaralha as máscaras, colocando-as, removendo-as. A mediação do vídeo dá pistas também de como o presente está preenchido por telas, essas janelas que sugam e levam a outros mundos como nas aventuras de Alice.
De todas as fronteiras borradas, a da interpretação é seu ponto frágil. Mesmo com a aparente dissolução de padrões reconhecíveis, em várias cenas o ator tem que dizer a que veio. Lida com conteúdos como abandono, perda, abuso infantil e sexualidade em meio ao forte recheio de humor e irreverência (a ponto de nos fazer imaginar que se o Asdrúbal Trouxe o Trombone estivesse na ativa, Hamilton Vaz Pereira e companhia enfrentariam formalismos do mesmo naipe). Alguns integrantes do elenco da Vértice demonstram pouca nuance. A gradação de estados alterados revela-se uma prisão caricatural do registro cÃ?mico quando o roteiro pressupõe abismos outros no meio do caminho. No conjunto, equilibra-se, mas a presença individual contrasta quem transita com mais desenvoltura na montanha-russa de Corte Seco.
O Fio Mágico
Bonecos ao sabor do tempo
Por Daniel Schenker
O teatro de bonecos é um terreno em expansão, cada vez mais exercitado a partir de diferentes perspectivas nos palcos brasileiros. Normalmente identificados com o campo infanto-juvenil, os bonecos vêm sendo utilizados na encenação de textos clássicos, a exemplo de Peer Gynt, de Ibsen, na versão da Cia. PeQuod, ou através da importação de determinadas técnicas, como a aquática, do Vietnã, praticada no recente Marina, do mesmo grupo. Diretores também demonstram preocupação crescente em promover a contracena entre atores, que tendem a despontar de maneira mais evidente em cena, e bonecos.
Uma das companhias de bonecos mais importantes do país, a Mão Molenga, de Pernambuco, apresenta agora O Fio Mágico, focando no público infanto-juvenil. Os atores aparecem exercendo a manipulação e portando máscaras brancas (como os expressivos rostos dos bonecos). Desdobram-se entre a criação de três idosas, encarregadas da narração da história, e os personagens da família de um menino que manipula a passagem do tempo com o objetivo de escapar dos instantes de sofrimento e antecipar os prazeres de outras fases da vida. Através dessa fábula, o grupo chama atenção para o risco de ver a vida passar, sem aproveitá-la intensamente.
Apesar da evidente seriedade do projeto, cabe fazer alguns reparos em O Fio Mágico. A composição das vozes sobressai de maneira nem sempre orgânica, em especial no que se refere ao monocórdio som estridente adotado para as narradoras idosas (ainda que, nos instantes de canto, o grupo procure extrair oportuno efeito cômico desse registro). A investida numa voz "exteriorizada" talvez possa, inclusive, ser atribuída como um problema frequente no teatro infanto-juvenil.
O texto de Carla Denise traz à tona questões relevantes sobre o tempo, mas fornece retratos um tanto convencionais das personagens. A mãe e a namorada/esposa da personagem principal são desenhadas como figuras tão-somente devotadas. A autora poderia ter optado por perfis passivos com o intuito de sublinhar a moral de uma determinada época (a história começa em 1908 e atravessa as duas Grandes Guerras), mas esta intenção não chega a sobressair na dramaturgia. Há breves informações, como a da vinda dos judeus para o Brasil para fugir do Holocausto (e a lembrança de Recife como pólo judaico), que não ganham desenvolvimento. A cenografia (direção de arte de Marcondes Lima) se revela mais expressiva na meia lua criada sobre a mesa, onde se desenrola a maior parte da ação, do que nos painéis de fundo ocasionalmente descortinados. A iluminação de Sávio Uchôa colore e a trilha sonora de Henrique Macedo embala a cena de uma montagem que, restrições à parte, dá provas do profissionalismo do Mão Molenga.
Comunicação a uma Academia
Austero, hierático, exasperante
Por Daniel Schenker
Desde a entrada do público, Comunicação a uma Academia evidencia características referentes a uma determinada proposta de teatro. Numa época em que os espetáculos procuram suprimir cada vez mais a distância entre palco e plateia através de um crescente questionamento da estrutura italiana convencional, essa encenação de Roberto Alvim propõe realçar o divórcio. Logo no início, um guarda de museu posiciona a corda que delimita uma separação entre plateia e obra de arte.
O distanciamento informa sobre a encenação de Roberto Alvim, à frente da companhia Club Noir, para Comunicação a uma Academia, de Franz Kafka. O diretor investe num tratamento austero e hierático, que exige considerável dose de esforço por parte do espectador. Esforço para não se dispersar diante de uma cena imersa na penumbra (belo trabalho de iluminação, a cargo do próprio Alvim) e centrada na interpretação de Juliana Galdino, que contrasta uma postura física retraída (através de movimentos lentos e controlados) com um arco vocal que transita entre a contenção e instantes de descontrole, sempre em registro grave. A atriz investe numa composição marcada e formalizada (realçada pelo figurino, de Danielle Cabral) que, porém, logo se torna orgânica.
A montagem confronta a plateia com uma noção de tempo mais exasperante que o vapt-vupt da contemporaneidade. Há uma notada aposta na imaginação do espectador, a julgar pela narração em off em cenas ambientadas na escuridão total. Ao mesmo tempo em que o público tende a se apropriar de maneira particular das palavras que escuta, a narração visa a suscitar efeito hipnótico. No teatro de Roberto Alvim, o importante não é "apenas" aquilo que se vê, mas também a imagem suprimida, tudo o que é interditado, como o contato direto com a obra no instante da visitação.
Savana Glacial
Presença líquida
Por Valmir Santos
Uma das portas de entrada para Savana Glacial é a do escritor diante de seu processo criativo. Jô Bilac, que passou pelo Festival Recife com Rebú (Companhia de Teatro Independente), deleita-se agora com a metalinguagem. Há um narrador insinuado, o intelectual enredado por personagens desbotados, inclinados mais a figuras tateando um roteiro, situações cumulativas que permitem ao espectador também palmilhar o seu caminho. Um labirinto simbolizado pela perda de memória recente de que padece a mulher central. O contexto estilhaça as noções de realidade e ficção: o ponto de vista dela inquire aqueles que a cercam, e estes tanto procuram guiá-la pelo imediato como são transformados em seres imaginários.
Arma-se um fluxo de inconsciência, vestígios para um thriller que está na cabeça do autor da peça, na cabeça do autor dentro da história, na cabeça da mulher em xeque, na cabeça do marido que a vela, na cabeça da vizinha tresloucada, na cabeça do motoboy implausível, o único dado não ilusório em seu macacão e capacete pretos, sujeito social intrometido no desenho das fantasias. Todas as paredes vêm abaixo, escancarando uma obra aberta cerebral que lembra o filme americano Quero ser John Malkovich e faz referência implícita à edição cinematográfica com flashback e fusões.
O caráter racional da trama não desbota o humor tão caro à obra emergente de Bilac. Convidado a integrar o projeto do núcleo Físico de Teatro, do Rio de Janeiro, ele fica à vontade para experimentar sem o compromisso de quem vai inventar a roda. Seus diálogos fruem mesmo em painel fragmentário.
A direção de Renato Carrera, por sua vez, traduz as sinapses dessa narrativa reforçando um papel mais ativo ao espectador. O principal recurso são os atores. Andreza Bittencourt, Camila Gama, Diogo Cardoso e Renato Livera ora preenchem ora esvaziam o espaço cênico, conforme sucedem os jogos mentais. E convencer por meio da não-representação é um desafio nem sempre superado no espetáculo.
O deslocamento corporal é pouco inspirado. Uma geometria de movimentos e gestos que aprisiona, apesar do arejamento coreográfico de um dueto a certa altura. O excerto da dança é, de fato, um interessante ponto de alívio. Faz par com a última cena, pausa delicada para o rumor do real que bate à porta. A mulher pede para o motoboy entrar. Ele, para ela sair.
Falta matiz à dicção. A estridência, no limite do grito, empobrece o registro de voz. O campo visual tem momentos de ostensão. A luz ganha tons carregados. Idem para a trilha, conarradora insistente. No conjunto, é como se, para dar corpo ao estranhamento dramatúrgico, fosse necessário acentuar as dissonâncias plásticas e sonoras quando equalizá-las, quem sabe, poderia ser uma das saídas. Essas escolhas esterilizam as emoções de um texto que tem suas janelas existenciais, fala da dor para a qual é imprescindível um estado de presença que Savana Glacial, o espetáculo, deixa derreter algumas vezes.
Memória da Cana
Garapa
Por Valmir Santos
Para todos os sinais machistas aos olhos de quem lê Nelson Rodrigues de chofre, não faltam entrelinhas para relativizá-los. Ao cotejar Álbum de Família com os estudos sociológicos de Gilberto Freyre, o Grupo Os Fofos Encenam, de São Paulo, beija a mão da figura do patriarca, o coronelismo arraigado na história do Brasil, ao mesmo tempo em que o põe a nu. Valoriza o poder de negociação da mulher por meio de Senhorinha, a esposa que serve ao marido canalha em Memória da Cana. É a personagem de Luciana Lyra quem vai puxar o cordão dessa travessia por cômodos e corredores da casa grande. Os óculos escuros com os quais ela passa boa parte do espetáculo, evitando ver o que lhe sabe nas entranhas, revelam subterrâneos da natureza humana, o plano primitivo não só no tabu do incesto, mas da imoralidade nas relações de exploração de classe que ainda pautam a contemporaneidade.
Não são apenas aqueles homens e mulheres que não estão em si, como dizem. Mas o lugar e o meio em que vivem: os tempos histórico, político, econômico e social. Os arquétipos freyrianos que encalçam a peça mítica de rodriguiana estão delineados de tal forma que essas perspectivas impregnam os objetos, os adereços, as cantigas e, sobretudo, o espaço cênico envolto pela planta que nomeia um dos ciclos vitais da formação e desenvolvimento do país, o da cana-de-açúcar, nele contida a contradição de abarcar trabalhadores rurais em condições análogas à escravidão.
Trata-se de uma intervenção vertical em Álbum de Família sem violentar sua estrutura trágica, o emparelhamento dos mitos gregos de Édipo e Electra, as obsessões amorosas de mãe/filho e pai/filha. Os abusos, mais uma vez, não são de ordem individual, tão somente, mas coletiva e comum ao cotidiano da propriedade ilhada, à margem da lei, desconectada da realidade.
"A árvore que vai ser cortada fica triste porque sabe que o cabo do machado é de madeira", ouve-se o provérbio a certa altura. Quando Senhorinha se dá conta ou simplesmente se espanta com a precipitação dos desejos e loucuras, no que parece uma nesga de consciência, já é tarde. A casa é desmanchada. No entorno, as ambientações cênica e sonora processam a tempestade, a voragem em que são metidas todas as figuras, inclusive as fantasmagóricas. Ocupando arquibancadas bifrontais, o espectador partilha nichos de cada um dos moradores ou recém-chegados. Súbito, ele tem seu ângulo de visão ampliado como se todos ocupassem o mesmo quarto, plateia e criadores. Rompe-se a condição de voyeur e o pacto agora é público, um corredor familiar. O ritual sincrético desce com a escuridão. E a catarse, com a luz de vela.
Já um dramaturgo destacado em sua geração na década que se vai, Newton Moreno soma Memória da Cana a Assombrações do Recife Velho com uma assinatura de direção segura, ousada e exercitada com distanciamento raro de se ver conjugado em dramaturgo que levam seus textos à cena. Impossível dissociar o espetáculo atual daquele de cinco anos atrás. A referência da cultura presente na biografia da maioria da equipe de criação, nascida em Pernambuco, é elaborada com sofisticação. Lyra, Carlos Ataíde, Katia Daher, Paulo de Pontes, Viviane Madureira e Marcelo Andrade (ainda corresponsável pelo cenário potente com Moreno) pesquisaram profundamente para atingir o sumo. Como a máquina que mói a cana e separa a garapa do bagaço. O caldo saboroso distribuído na fila de entrada da primeira sessão ocorrida na comunidade Nascedouro de Peixinhos. Uma noite encerrada sob o ritmo do Maracatu Estrela Brilhante, que fez participação especial durante a apresentação em que Nelson Rodrigues e Gilberto Freyre se deram as mãos para pensar poética e criticamente o seu país.
Mar me quer
Beliscar a ternura
Por Valmir Santos
A escrita de Mia Couto prima pela organicidade com que cria espaços simbólicos e neles assenta o leitor. Em Moçambique, ele é um interlocutor recorrente do teatro. Seus contos e romances têm boa acolhida nos palcos de outros países de língua portuguesa, sejam africanos ou ibero-americanos. O Festival Recife recebe A Outra Companhia de Teatro, um dos grupos residentes do Teatro Vila Velha, de Salvador, que transpõe para a cena a narrativa breve de mesmo nome: Mar me Quer. A adaptação e direção de Luiz Antônio Jr. consagram a musicalidade das palavras do autor ao duplicar as vozes dos personagens, Zeca Perpétuo e Luarmina, abrir transversais para cantigas populares e brincar com os gêneros, tempos e relatos da fábula.
Brincar é um verbo que não barateia. Ancora o jogo que demanda dos quatro atores atenção global na semiarena de espectadores que os envolve. Eddy Veríssimo, Luiz Buranga, Manuel Santiago e Roquildes Júnior demonstram sintonia nas mutações de papéis, no olho a olho da proximidade com o público, nas mutações do canto a capela, na miudeza da percussão sonora simultânea à ação e à narrativa. Dão a ver e ouvir que se apropriaram da pesquisa que enunciam.
Um desnível conjuntural na interpretação do texto e na incorporação de suas imagens, porém, arrefece a histórica de amor de estrutura e ritmo épicos – cantada e falada. A polifonia textual, espacial, temporal e interpretativa atinge tal grau de elaboração em Couto que parece imprescindível uma densidade existencial do elenco. Zeca Perpétuo, Luarmina e os redivivos Celestino e Agualberto transitam territórios presentes e antepassados, sabedorias de vida do velho à criança, de marcas do corpo e da alma que as atuações nem sempre correspondem tecnicamente.
Para além da mimese à qual recorrem com sutilezas, talvez coubesse aos atores/narradores aprofundar a figura do griô, a aura espiritual do mestre numa roda em que a memória é acessada por meio da oralidade. É mais complexo fazer isso dentro da corajosa proposta d'A Outra Companhia, em que outros níveis de escrituras estão em relevo. Aos signos verbal e corporal, preponderantes, somam-se os objetos não-convencionais transformados em instrumentos musicais ou materializados numa passagem ou outra; os dois aparelhos de rádio portátil que desenham espaçamento genial das palavras entre emissor e receptor; ou ainda a cena em que o espectador toma uma folha de papel em mãos para ler um trecho, momento em que a encenação promove um retorno coletivo ao livro como fonte seminal do projeto. Pois é também aqui que a ideia não se completa plenamente porque o ator transparece insegurança no ato da leitura de fora para dentro, não de dentro para fora justo na interação objetiva com o público.
De qualquer modo, o espetáculo desses artistas "belisca a ternura", como escreve Mia Couto, com uma faixa de vibração poética digna do universo do autor. Não é pouco.
Tomo suas mãos nas minhas
Das potências
Por Valmir Santos
No ano em que se completa um século e meio do nascimento de Anton Tchekhov ele provavelmente desconfiaria das boas intenções das efemérides. A ironia lhe foi companheira. E mesmo quando enamorado, segundo confessa no derramamento sentimental e demasiado humano assumido nas cartas que trocou com a mulher Olga Knipper nos últimos seis anos de vida. O tom intimista daquela correspondência serve à americana Carol Rocamara em Tomo suas mãos nas minhas, uma dramaturgia centrada nos diálogos escritos entre o final do século XIX e início do XX. As linhas lidas e ouvidas hoje compõem por si um drama que dá notícias do autor genial e do sistema teatral que gravitava à sua volta. Vida e arte são entretecidas em Tchekhov e Olga, como na relação deles com Constantin Stanislavski e Nemirovitch-Dantchenko, os criadores pilares do Teatro de Arte de Moscou citados com recorrência na peça interpretada por Roberto Bontempo e Miriam Freeland.
É adorável notar como o discurso amoroso vindo desde o ventre do ofício teatral pode mobilizar o espectador do século XXI, contrariando a percepção de que as implicações de escrever, dirigir ou atuar circunscrevem aos trabalhadores do teatro e seguidores afins e não interessariam ao público em geral. O Teatro de Santa Isabel ouviu espectadores soluçando na primeira sessão de domingo do Festival do Recife. A capacidade de afetar vem, primeiro, das palavras mediadas pelo casal de atores, também eles umbilicados por vida e arte na realidade, cúmplices de histórias sobre a paixão incondicional pelo palco. Detalhes dos processos de escrita e ensaio de A gaivota, Tio Vânia, As três irmãs e Jardim das Cerejeiras encaixam-se como luvas à narrativa epistolar.
Rocamara desliza um tanto para a curva padrão do típico roteiro biográfico hollywoodiano, o romance com desfecho trágico. Mas, felizmente, prevalece a tônica das cartas reveladoras de éticas pessoal e artística que soam urgentes em nossa época.
Diante desse material instigante, a direção de Leila Hipólito opta por caminhos convencionais. Bontempo e Freeland seguem à risca o estilo naturalista da representação, os semitons de voz. As atuações e a encenação conversam pouco com o leque de possibilidades da cena contemporânea, o pressuposto metateatral que o texto concede. Não como efeito utilitarista, mas com a naturalidade que a obra contém. Tchekhov e Olga estão apenas corretos, alinhados à marcação.
A cenografia (por Fernando Mello da Costa) sugere o espaço de trás do teatro, bastidores e camarins que viram os lugares ou hotéis onde o médico e dramaturgo passa em suas viagens. O desenho luz (Maneco Quinderé) é o elemento que ao menos se arrisca, com feixes que quebram a aura esmaecida.
Tomo suas mãos nas minhas é um projeto que cumpre modestamente o que se propõe. Reluz, por meio das cartas, o homem e a cultura de teatro que a Rússia, antiga União Soviética, legou ao mundo ocidental. No entanto, o espetáculo perde a chance de virar-se mais do avesso com os códigos de época, legítimos. Chance de aliar o potencial dos intérpretes, a emoção tchekhoviana e a vontade de pesquisa e experimento que orientou os homens e as mulheres que fizeram história no Teatro de Arte de Moscou. Um espetáculo que tem tudo nas mãos.
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