A FILHA DO TEATRO
A SERAFIM TRAZ SEU NOVO ESPETÁSCULO NO PALCO DO HERMILO
Numa realização da Cia. Teatro de Seraphim, a peça a peça de Luís Reis, põe a nu os mecanismos de uma decomposição das relações humanas e profissionais, através de um jogo em que três atrizes se revezam em três personagens, esculpindo com as palavras uma trama de transbordamento de vida dentro da vida, do teatro dentro do teatro, privilegiando um de seus maiores dons: o da transformação, da metamorfose de um em outro, para um público que se deseja íntimo e que, de perto, pode acompanhar estas transmutações.
Um quase melodrama em três tempos
No palco nu, três atrizes aguardam a entrada do público e o início do espetáculo. Soado o terceiro sinal, uma de cada vez, põem-se em movimento. Sempre que deixam as cadeiras e vêm à boca de cena, transmutam-se em personagens: uma mãe, uma filha, uma outra mãe, postiça. Elas contam suas histórias, que se entretecem para constituir uma história única, narrada em compasso ternário. Na trilha sonora, um tiro, um choro de criança, uma prece.
Com esses ingredientes despojados Luis Reis arma sua peça. Um pé no melodrama, como ele mesmo diz, mas com tonalidade moderna. Um história que acontece no teatro, envolvendo um casal de atrizes, uma protagonista de show pornô e uma criança que nasce no interior desse triângulo.
Como estrutura, a alternância das vozes, demarcadas por aqueles sinais sonoros. Uma estrutura bem pouco dramática – a rigor, nada dramática – mais próxima da literatura contemporânea, construída por diversos narradores na primeira pessoa do singular. (Na teoria do teatro, já admitimos sem remorsos a presença de textos discordantes do cânone dramático. Sabemos que eles não são incompatíveis com o palco. Mas são certamente um desafio para os encenadores, que devem saber extrair deles sua teatralidade, sua qualidade cênica).
Neste caso, importa menos a trama do que o ponto de vista do narrador. É sua ótica, no confronto com as outras perspectivas, que propicia um elemento de tensão no interior da fabula.
Outro elemento de confronto, em A Filha do Teatro, é a associação de dois mundos opostos, o da classe média e o do bas fond, do experimentalismo vanguardeiro das profissionais do teatro e o outro lado da cerca, onde o uso “artístico” do corpo é meio sórdido de sobrevivência.
Na tradição melodramática, o destino – que pode ser a força da natureza, o acaso – é responsável por boa parcela dos acidentes dramáticos que pontuam a trama e, em geral, pelo desfecho. Há uma inevitabilidade da desgraça, reforçada pela ação dos “maus”, aqueles cujos antecedentes os condenam. No ensaio melodramático aqui apresentado, esse lugar está ocupado pela impropriedade do consórcio constituído pelas três mulheres no passado – já que uma delas é apenas mencionada, sem existência física no palco – e a insistência em se preservar essa relação. A inadequação do acordo, a impossibilidade de harmonia entre realidades tão incompatíveis encontra seu desfecho na introdução no plano da narrativa do elemento masculino, marginal e desestruturador, que provoca a morte, inesperada e gratuita, e por isso trágica, de uma das mulheres dessa família singular.
O que assistimos em cena, é à evocação desse passado, no momento em que a situação já se encontra estabilizada, chegada a seu termo. No plano do presente não há mais impacto ou conflito, apenas memória. É a memória o motor da narrativa. Uma memória destituída de paixão, conformada.
Acrescente-se a isso, a diluição intencional do possível impacto dos conteúdos evocados pela afirmação constante do caráter metalingüístico do evento cênico. Luis Reis obriga as atrizes a um rodízio de personagens, destituindo-as da propriedade de uma e qualquer delas. Essa condição acentua o patético do relato, e também contribui para sua desdramatização, agora no sentido vulgar do termo, de evento embebido em sentimentalismo. Os sentimentos ou emoções, na peça de Luis Reis, dissolvem-se no plano metalingüístico da narrativa, na sua recusa da atualidade dramática, do diálogo. No protagonismo solitário do monólogo – de todas as formas do teatro, aquela que se encerra em si mesma, sem possibilidade de intervenção de um semelhante – ressoa a dimensão solitária de cada uma dessas mulheres, ao final isoladas cada qual em seu mundo, revelando a fragilidade dos elos de amor e solidariedade que pareciam uni-las no primeiro tempo deste relato.
Silvana Garcia Pesquisadora, autora de livros sobre teatro, professora da Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo
O texto de Luis Reis revela uma qualidade essencial para aqueles que pretendem escrever para o teatro: a concisão da linguagem, a escolha certa das palavras, a clareza sobre o que deve ou não ser dito, ao se contar uma história. Os relatos entrelaçados em A Filha do Teatro – outra feliz escolha de título de vocação melodramática combinada à natureza metalingüística da arte contemporânea –, encaixam-se bem nos ouvidos exigentes. O drama armado pelo autor dá conta de todos os aspectos sensíveis das relações entre as personagens sem cair em excessos ou em truques narrativos. Trata-se de uma peça despretensiosa, no seu melhor sentido, escrita com delicadeza de autor maduro. Assim se faz um bom teatro.
Com Marilena Breda, Cristina Romeiro e Lúcia Machado.
Direção de Antonio Cadengue.
Teatro Hermilo Borba Filho
Estréia dia 5 de junho de 2007
Terças e quartas às 20h
A temporada segue até 25 de julho.
CONFIRAM!!!!
3 comentários:
Estarei conferindo esta apresentação ainda amanha...
Áhh adoro o seu blog, sempre muito atualizado, e traz muita informação interesssante do nosso teatro...
É um espetáculo sensível e comovente com três maravilhosas atrizes, com um pequeno destaque maior para Marilena Breda.
Uma das coisas mais sofisticadas que já vi.
A maestria da Companhia Serafim volta a pulsar neste espetáculo que já está marcando história na atual cena pernambucana.
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